Enquanto uns amanhecem, outros reconhecem a noite. Dor e alegria, cada uma em um canto, equilibram os pólos, a terra e o sistema solar. Não é assim o mundo? Brasil e China. Vitória e derrota. Hambúrguer e rúcula. Morte e vida.
São 7 da alvorada de domingo em Belém do Pará - cidade das mangueiras e de altos índices de lepra, também metrópole do açaí e dos acidentes de carro.
O estudante de medicina Victor Alexandre Miranda, 22 anos - de certo modo bem-nascido, branco e vigoroso -, contempla o sol de mais um plantão, em um mesmo pronto-socorro público no qual dezenas de pretos, pobres e esfacelados mal respiram em macas quaisquer. “É uma lógica de injustiça e discriminação”, pensa ele, para imediatamente se auto-anestesiar, abandonar a filosofia e adentrar na morbidez da prática. “Porque, imagina, se fosse me comover com tudo e de verdade, eu sairia daqui me suicidando e amaldiçoando esse Deus que não existe”.
O Deus por que todos acabam orando mistura, no mesmo liqüidificador de desespero, trabalhadores e bandidos, crentes e ateus, jovens e velhos, homens e mulheres.
No Pronto-Socorro da Av. 14 de Março (no centro da capital paraense), onde faltam profissionais, materiais e equipamentos, o ponto em comum entre os desesperados é justamente a falta de dinheiro. Outras circunstâncias de perfil acabam se aglomerando: têm pele escura, pouca instrução e uma biografia de nenhuma oportunidade para relatar.
Ali, o trabalho de Victor é aprender, suturar, anestesiar, remediar e ver morrer, na medida do possível e do sofrível. Das dezenas de pacientes que chegam instante a instante, uma pequena parte logo se transfere para hospitais particulares; a maioria depende do SUS, e assim se ensangüenta.
São 7 da manhã e o plantão termina. Ele corre pelos corredores desde as 7 do dia anterior. Saldo, além da soma óbvia na carreira e dos choros guardados: Victor Miranda, 22 anos, cheio de gás e de choque, conta a participação em mais de 30 procedimentos de emergência durante a madrugada e o presenciamento de no mínimo 3 mortes.
Sob a experiência dramática de um estudante de medicina, ele calcula que o tempo médio de espera no atendimento efetivo pode ultrapassar 5 horas.
Digamos: é pouco para o resto de uma vida... de quem já está condenado, mas muito para o prolongamento de uma dor... de quem ainda pode ser salvo.